O cinema fotográfico



       "Campo de Flamingos sem Flamingos" de André Príncipe é um filme eminentemente fotográfico que acompanha a sua obra fotográfica e lhe faz justiça. É curioso que surja assim um filme que apresenta uma qualidade tão pouco expectável no cinema, onde o tempo cinematográfico foi convertido momentaneamente naquele outro da fotografia e parece ser domado por ela. É possível fazer um objecto de visionamento assim, vêmo-lo em galerias, em locais pouco apropriados ao cinema, mas então o filme de André Príncipe revira-se e depois de ter subjugado a tela à experiência da visão fotográfica do autor, divide-se para um segundo momento onde se afirma como o travelogue que o autor pretendia.
       A primeira parte deste filme vive de tempos fotográficos, cenas individuais filmadas no tempo, isoladas entre si e sem contacto. O que é extraordinário é que esses tempos não pareçam remeter para nenhum passado ou nenhum futuro, mas transformam-se antes numa experiência visual onde pela visão do fotógrafo e realizador nos é dado um presente contínuo, momentos sucessivos de presente que podiam todos eles fazer parte de uma e só fotografia mas que aqui se afirmam no movimento. Sem que esse movimento se revele nostálgico em relação ao anterior (personificado à relação que o espectador estabelece com os momentos cinematográficos), tornam-se momentos de um presente fotográfico. Este presente é algo relativamente recente para a tela do cinema que, mantendo as suas linguagens, sofrerá a mutação dos tempos narrativos que devenham das interacções entre linguagens, como neste caso, da permeabilidade entre a fotografia e o cinema. 
       A segunda parte do filme começa precisamente onde o presente da primeira cessa. Regressamos a uma das cenas  (sem que antes isso tivesse sucedido) fora do seu tempo, ou seja, depois dele e então tudo começa a ser o depois e o antes. Um depois e um antes que em nada fogem ao presente porque lhe são contíguos mas que na narrativa deste filme se lhe dirigem em resposta. A luz de um contínuo dia presente começa a cair, mas começa a cair na mesma exacta proporção em que esteve vigorosa anteriormente, fotografias de um fim-de-dia contínuo. 
       Na sucessão das imagens que regressam às cenas anteriores e das novas imagens nocturnas, a luz ténue ou pontual dos espaços exige um movimento diferente às imagens. Umas revelam-se como fotografias desse outro momento da visão — o da luz ténue, onde tudo é indiscernível e mais claro ao mesmo tempo. Essas novas imagens fotográficas são então corrompidas pelo regresso aos pontos de narração das anteriores, ou até mesmo da narrativa exposta pelo único protagonista e que circula o filme juntamente com a visão do autor. Neste segundo momento, André Príncipe e a sua equipa surgem figurados, dentro desse tempo que já não é um antes ou depois das fotografias filmadas, mas um durante, o seu fazimento. Esse corromper da visão fotográfica repõe o realizador dentro do seu filme, como antes era hábito repor o fotógrafo dentro do seu livro. O filme de André Príncipe vive desta sua afirmação de visão particular e individual do mundo, e surge-nos como um complemento da sua fotografia.

"Campo de Flamingos sem Flamingos" de André Príncipe